domingo, 26 de março de 2023

Dá-me a beber

 


poderia ser chamado loucura

quando escrevo algo

na vida provisória dos disfarces

o que é fato é que eu não acharia 

surpreendente

coser palavras ao teu corpo como quem,

arisco, o habita, coroado de renúncias,

enquanto arranjos indecisos

chovendo cântaros de desejos

desgarram-se das minhas mãos

sob um vento leve que modela o seu rosto 


José Carlos Sant Anna


sexta-feira, 17 de março de 2023

Oração ao relógio de parede

 



Só comigo acontecem essas coisas: contar meus segredos ao relógio de parede da minha sala, que, atento, como se fosse antenas de inseto, fareja o gradil de marfim que o protege. Sem dar com a língua nos dentes, você há de convir, meu caro leitor, que pode não ser o fim do mundo este gesto, mas é, no mínimo, uma atitude inusitada deixar-se fisgar pelo relógio na parede, empertigado, sem gaguejo nas suas notas, mesmo se sabendo perdido na sua solidão, ou seja, a viver suspenso por uma bolha, um tanto isolado, mas um leal confidente nas horas incertas. E qualquer coisa diz, vaidoso, o terapeuta quando a tarde esplende do lado de fora e os antigos amigos, sem subterfúgios, transitam como um barco pelas correntezas da minha memória e dos meus afetos; às vezes, passam agitados, outras, pousam nos "bares da vida" como aves lerdas, fugindo dos escritórios, mal o sol se recolhe no horizonte, e a tarde, por breves momentos, esfria nas primeiras sílabas da noite. Tudo porque eles não têm um relógio de parede, fatigado, ruflando suas asas para a vastidão das coisas finitas, radioativas, que nos aguardam nas esquinas como as rosas de maio ou as linhas da vida esculpidas nas palmas das mãos sem que nos digam a céu aberto para o que fomos feitos... Confesso. Quero viver muito com você, meu relógio de parede, desde que se mantenha fiel às minhas piores ressacas...


(José Carlos Sant Anna)


quinta-feira, 9 de março de 2023

Na cadência II

 


Bailado que não se guarda, 
me cativa, 
ainda que se esquive, 
me prende;
bailado que não me carrega
enlaçado a seus pés
como uma estrela na escuridão
é bailado que não quer saber
o gosto da fome e da febre
do meu coração. 


                     José Carlos Sant Anna


quarta-feira, 1 de março de 2023

Muitas razões

 



A sós, nos grãos da terra, digo sim à luz aberta dos seus poros

e, ao tumulto da ebulição, digo não. E digo sim ao futuro

com medo de quando ele chegar não me encontre.

E digo sim à pulsação serena da escrita,

pão nosso de cada dia,

águas que não se cansam de brotar de fonte escondida.

E digo sim ao perfume da memória,

e digo sim ao bulício do devaneio,

e digo sim à chama do ócio.

E desleio qualquer outro sopro a não ser o da vida

porque tenho de vivê-la atento a qualquer gesto distraído

que possa desviar-me do caminho. 


                        José Carlos Sant Anna



segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Ofélia

 


Ofélia estende a mão para colher um pedacinho de céu, no horizonte, no meio da tarde, e esquecer o cansaço que a vida lhe traz, antes de seguir o seu quotidiano no cais do porto, ainda que ela saiba que existem tardes em que os navios não atracam, em que as estrelas não são visíveis a olho nu. Hoje, é mais uma dessas tardes, no horizonte de Ofélia. Tardes incendiadas. E os seus lábios sem a febre habitual saem à sua procura. Quando o seu coração, cansado, o amar perdido, dá imensas voltas nas suas pálpebras umedecidas. Ela anda dentro de si mesma nas sandálias apertadas aos seus pés e, à roda dos seus olhos, se nota um abrir de sulcos de palavras soltas. Ofélia, esquiva, perambula, enquanto a noite ainda não pousou sobre a cidade o seu véu. Varada de solidão, caminha aguardando o dobrar do dia. Faz tempo que Ofélia descerrou os punhos e descobriu o quanto o açúcar reconforta, ainda que faça mal à saúde. É o açúcar que a faz esquecer o pranto, que a faz esquecer o grito calado. Quando o céu começa a cobrir-se de um tom avermelhado, anunciando o crepúsculo, é a hora em que a pele da noite começa a se abrir pacientemente e, vertigem desdobrada, os seus olhos ejaculam promessas ao dia inacabado. É também quando começam a sangrar mais fortemente suas águas.


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Ao longe os búzios clamam


imagem pixabay

Aparentemente, era o que parecia, mas, por puro milagre, não por outra razão, ela estava imune. Assim, a moça acolhe o olhar, regulando as horas enquanto suas mãos se agigantam cortando os quiabos depois de lavados com água de cheiro. E saudosa, ela prova o tempero do verbo e explicita que ainda se comove com a nudez que o verbo incita. E das outras coisas em volta, pressente que tudo não passa de uma ânsia amorosa como se fosse um espectro de luz, pedindo-lhe que se aproximasse para que aprendesse a lição das mãos que se mobilizam a dizer-lhe que há séculos a lua persiste nas dunas do tempo ante a iminência, mais do que na ausência. 

 

(José Carlos Sant Anna)


terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Na cadência

 

imagem pixabay

Quando ela passa
ouço os seus passos
e o balançar de suas ancas
a dizer-me:
– sou mi nei ra,
mi nei ra mi nei ra mi nei ra! 

                     José Carlos Sant Anna


sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Vovô do Prato

 


Orquestra Neojibá - Salvador - Bahia - Brasil

O almoço reunia a pequena família. Enquanto esperavam à mesa o pescado ao leite de coco que exalava o seu pecaminoso cheiro na última fervura na boca do fogão, o avô tilintava ruidosamente os talheres no prato quando, de repente, todos levantaram a cabeça se voltando para o neto de quatro anos que, cheio de graça, tirou este coelho da cartola: 

– Mãe, quando vai ser o concerto do Neojibá* com Vovô do Prato?


José Carlos Sant Anna


O NEOJIBA - Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia - criado em 2007 pelo pianista, educador, regente e gestor cultural Ricardo Castro e vinculado à Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Governo do Estado da Bahia



sábado, 28 de janeiro de 2023

Esse fogo

 



Se, por acaso, na tarde quente

desta sexta-feira

ela telefonar para dizer-me

que a surdina

se engasgou com o morno vento

ou que o vinho tinto

manchou a porta do ano novo

sem ter sido acusado de homicídio

não me constrangerei

como já fiquei,

outras vezes, constrangido

porque a razão

por vezes contorcida e tensa

não explica o vagar do ar

quando tatua em minha face

o fogo devorador da palavra,

o que não se mostra a qualquer vento. 

E por mais que eu queira,

E por mais que eu tente,

Simplesmente, não consigo,

que ele não me queime os olhos,

 

José Carlos Sant Anna,



domingo, 22 de janeiro de 2023

Descompasso

 

Imagem by Google

aquela felina roeu os meus andrajos e soletrou, entre as sombras da madrugada, a palavra umbigo trocentas vezes antes de escovar os dentes com Kolynos. depois ela esticou o pescoço como se fosse uma girafa para ler o que eu escrevia na parede da sala do que restou da utopia dos nossos imbróglios, após os enganos e desenganos dos nossos banquetes. como eu nunca soube que a loucura tivesse orgasmo, arrastei as fissuras do nosso caso para debaixo do tapete e, subitamente, bolerei num perfeito idioleto uma canção de tédio para as nuvens tensas que pairavam sobre a minha cabeça enquanto ela fugia levando o meu violão.

José Carlos Sant Anna



domingo, 15 de janeiro de 2023

Transcendência

 


Enquanto eu olhava

nos olhos dos sertões euclidianos

o dia que parecia tão bonito

empalideceu

sem conspiração metafísica

tornando difícil explicar 

a liturgia do tempo 

no verde das folhas adormecidas

às margens do que eu pensava


E enquanto você desenfurnava

barcos de papel do ventre do mar

com a sua câmera,

meus batimentos cardíacos 

me aturdiam,

o mundo explodia lá fora

e o formigueiro se mantinha intacto 

no meu jardim.


                      (José Carlos Sant Anna)



Dá-me a beber

  poderia ser chamado loucura quando escrevo algo na vida provisória dos disfarces o que é fato é que eu  não acharia  surpreendente coser p...