
Só comigo acontecem essas coisas: contar meus
segredos ao relógio de parede da minha sala, que, atento, como se fosse antenas
de inseto, fareja o gradil de marfim que o protege. Sem dar com a língua nos
dentes, você há de convir, meu caro leitor, que pode não ser o fim do mundo este gesto, mas é, no mínimo, uma atitude inusitada deixar-se fisgar pelo relógio na parede, empertigado, sem gaguejo
nas suas notas, mesmo se sabendo perdido na sua solidão, ou seja, a viver
suspenso por uma bolha, um tanto isolado, mas um leal confidente nas horas incertas. E qualquer coisa diz, vaidoso, o
terapeuta quando a tarde esplende do lado de fora e os antigos
amigos, sem subterfúgios, transitam como um barco pelas correntezas da minha
memória e dos meus afetos; às vezes, passam agitados, outras, pousam nos "bares da
vida" como aves lerdas, fugindo dos escritórios, mal o sol se recolhe no
horizonte, e a tarde, por breves momentos, esfria nas primeiras sílabas da noite. Tudo
porque eles não têm um relógio de parede, fatigado, ruflando
suas asas para a vastidão das coisas finitas, radioativas, que nos aguardam
nas esquinas como as rosas de maio ou as linhas da vida esculpidas
nas palmas das mãos sem que nos digam a céu aberto para o que fomos
feitos... Confesso. Quero viver muito com você, meu relógio de parede, desde que se mantenha fiel às minhas piores ressacas...
(José Carlos Sant Anna)